daqui do alto posso ver o mar. a manhã já vai um pouco tarde e o sol começa a anunciar sua luz e força de maneira mais presente. mesmo embaixo das árvores altas com os frutos mais antigos, um pé de jambo perfumado que aqui só pequenos pássaros aproveitam, mesmo alí, debaixo dessa sombra onde o calor morno da manhã insiste, as moscas pairam pelas frutas caídas e metade apodrecidas, e fazem o que podem alí. ontem um anúncio de acidente vislumbrado pelo encontro do vóo rasante do pássaro branco, e do carro que seguia como de quisesse seguir adiante por uma avenida muito além do seu fim, eu do alto do meu ombro esquerdo pude ver, por um instante, como o carro vindo em velocidade e o encontro das vôos ela a pomba branca e eu em meu carro básico eu mesma sendo a pomba e o carro, o vôo para longe. ela que não morreu nem se machucou, ao que parece, e eu também, somente um pequeno susto, um instante para acordar a vida que segue ainda, talvez. e esse instante de encontro traduziu a continuidade de existir até que algo mais forte venha ao nosso encontro. e há um alguém que me liga, que me chama para ir ao seu encontro e eu como uma pomba parada no meio fio, acima do semáforo, sem me importar se as luzes são amarelas ou verdes, se o farol se abre ou se fecha, eu fico alí parada, ouvindo alguns outros sons vindos de longe e sua voz se fez tão irritante porque era feliz e eu não faria parte dessa alegria, nem mesmo por instante. enquanto o som dos pedregulhos me trazia o mar de volta batendo nas pedras e trazendo para a praia aqueles quase pedregulhos, pedaços de garrafa, copos de vidros grossos, as cores escuras marrons esverdeadas e os azulejos decorados em rosa ou azul das casas com seus banheiros e pátios e as salas de piso frio, que eu tanto desprezo com seus jogos de sofá, estante e televisão, tudo e tudo empareado com o tédio de viver, agora arredondados pelo polimento das ondas e meus pés descalços polindo a pele já um pouco grossa, uns calos e descamações nos lados. eu me pegando fazendo o mesmo gesto, tirando a pele solta e tentando me lembrar como é que fui crescendo e quanto tempo havia passado desde o dia que eu ví os pés calejados da minha mãe e um tanto ofendida pelo destrato, e não me referia a uma falta de vaidade, porque ela, muito diferente de mim, vai com frequencia aos lugares onde mulheres se cuidam, mas eu falava de outro descuido, de como é que ela podia deixar de perceber o tempo calejando sua pele, seus ossos enfraquecendo, e como ela podia não perceber que eu já não aceitava isso acontecer, eu que agora, nesse mesmo instante me deparo com essas peles mais grossas em mim, e me pergunto como é que eu fui envelhecer ao mesmo tempo contatando que não dependia de mim, e mesmo que não fosse hora ainda, eu que havia sempre feito quase nada. que talvez seja pior que o nada. e o pessoal que já volta do feriado e a dona da pousada ainda me esperando. eu chegaria por volta das dez da manhã num horário bom para se chegar, entrar no mar, talvez apenas sentir na pele a água do mar. porque o jeito de entrar no mar depende do estado de espírito da gente, eu geralmente me atiro no mar, quando já me encontrei nele. aqui a onda se faz distante e os carros ausentes de todos que estão lotando as estradas e praias e postos de gasolina, e eu que não perderia a semana toda se pudesse ter dito a ele que tinha feito a mesma viagem que eles haviam feito, mas que eu havia ido muito longe talvez.e ele me liga perguntando se estou bem, se vou ficar bem, se posso encontrá-lo e eu não sei explicar nem dizer que não posso mais vê-lo porque ele é alguém que não consegue me enxergar, que com a miopia da minha visão e a cegueira nos meus olhos, poderiamos ter nos encontrado bem antes, mas que agora, parecia já ser tarde demais, as noites todas se superpondo e minha angústia àdistância, agora resvalou numa insistente frieza e necessidade de enclausuramento. eu havia me tornado invisível nesses dias, desde há muito sentía isso, mas quando o melhor amigo do emu irmão passou por mim sem me reconhecer, quando a lembrança de dias que se foram e a certeza de um mar presente que me aguarda me torna mais miserável do que eu sou, deixando de gastar reservas mas assim gastanto todas as minhas últimas e pequenas energias acumuladas nessa pele pálida e num corpo magro. eu agora sentia que iria permancer assim, sem atividade, inútil como a pomba no meio da manhã, ou iria olhar as outras anônimas a comerem os restos de quaisquer coisas nas calçadas sujas, eu aqui empilhando jornais lidos por um bom tempo e me perguntando da diferença entre o mar e a montanha, se as águas que descem pro mar um dia não se encontram todas bem dentro dos sonhos como úteros inflados de imagens de seres desejantes. diferente das gramas bem tratadas dos clubes de futebol, e por onde corpos suados se movimentam em passes pensados, tomadas de bola, corpo e mente sincronizados. enquanto assistimos a explosões de energia, expulsões em campo, apitos, falhas, ataques, faltas, etc, e comentaristas do esporte relatando com a alegria e precisão tomadas de decisões vistas de longe, por eles analisadas como se estivessem alí de dentro do corpo pulsante, quando determinam do alto de suas cadeiras macias com as mãos pousando a mesa em forma ovalada de fórmica que um músculo mais inteligente pudesse assumir uma virada de direção para um lado ou para outro, como se a bola e o jogador fossem joguetes que dispusessem de seus corpos para realizar táticas ambiciosas projetadas por decisões técnicas de outros. ou mesmo uma pausa necessária, o intervalo, quando bebem água e continuam a prosa valente dos que nada fazem e muito dizem. eu que deixei a casa limpa por dias seguidos me pareço a essas mulheres idosas que quando entram em supermercados fazem cara feia para as novidades e embalagens, e comem sempre do mesmo pão e da mesma manteiga e acham-se sim no direito de reclamar quando um ou o outro faltam, mesmo que isso eu não faça, eu que mantive a ordem que me consumiu por três dias inteiros e exausta desse nada repleto e faminto, numa autopiedade para comigo mesma em que a escolha de ser só imperou, eu que duvido de mim o tempo inteiro, afirmei dessa vez o negativo. e você que veio aqui e feito o convite por mim recusado, não hesitou por um instante sequer, mesmo que dias depois agora a sua viagem tenha acabado e a minha começe. sigo assim num permanente desencontro muito calculado, ou possivelmente também isso sequer exista, porque jamais houve um encontro, isso também é verdadeiro, porque só pode ser falsa a idéia de um desencontro quando a construção do encontro nem mesmo foi real um dia. e nos dois sentidos. mas somos como uma estrada, uma via de mão dupla, onde corremos cada um de um lado, indo e vindo em sentidos opostos. e ele fala das estradas cheias, do horário que deve voltar, já marca um encontro para não despertar em sí qualquer dúvida, e eu aqui imagino como ele suportaria dias de solidão sem pesar, eu que me pergunto, como ele suportaria não ter diante de sí a montanha que [percorreu, a pizza que comeu, a estrada e as tecnologias móveis que não nos movem de verdade.
o mar me espera. cinza como as estradas desses feriados religiosos que se misturam a temas mundanos de sorte que no natal não sabemos se compramos ou se rezamos, ou se justificamos uma ação pela outra.
minha mãe não me espera. eu é que espero alguma ação em mim, evitando que alguém possa descobrir o quanto estou sedenta de partir e que venha me encontrar antes que eu tenha partido de verdade.
posto que estou preparando as malas e comprando passagens. uma amiga me pergunta "para onde?" e não há resposta alguma pois não vou para lugar algum, eu que preparei a mochila para os dias de praia, com as minhas poucas peças escolhidas de roupas, um shorts, dois biquinis, umas três calcinhas e as camisetas de que mais gosto, além dos chinelos amarelos, colocadas lado a lado com a leve angústia de estar ainda aqui e a preguica de partir.
em cima da cama há uma mochila à espera.
as 11:25 da manhã numa cidade vazia.
sentindo daqui o cheiro do mar.
talvez hoje eu tenha entendido o sentido do escrever. entre os livros de infância preferidos a necessidade de trabalhar a imaginação. pipi meias longas, na versão que eu lia, pipi da meia comprida. a menina valente que vivia só em sua casa a enfrentar ladrões, com seus amigos vinhos e seus pais imaginários. a capa era toda vermelha.
quando meu filho era pequeno me lembro de comprar para ele ler um livro que achava as vezes não fazer o menor sentido, as vezes para mim, outras para ele também. Perguntas estranhas se faziam como" Há um elefante dentro da geladeira? Em cima da geladeira? Na sala? Na cozinha?" E assim,conforme se procurava o elefante se constatava que não havia um elefante alí, mas a gente ia descobrindo de forma divertida o que de verdade havia alí, assim, um pote de geléia, os ovos na geladeira, a sala,a mesa e as cadeiras iam se apresentando como a própria casa. Mas sempre me perguntava pelo elefante. Qual era o lugar dele na casa?
Há elefantes por aqui e estou procurando por ele, principalmente dentro da geladeira e dos potes de geléia de amora.
fico feliz que você tenha chegado e que esteja aqui. e não vou te atender.
pena que você não leia o meu blog, e essa a frase é sua.
adoro isso quando o telefone toca e toca e eu adoro isso porque quanto mais toca mais vontade eu sinto de não atender à sua linha cruzada. você tem a mania desagradável de não falar com uma pessoa de cada vez, não tem noção da indelicadeza que é essa de colocar sempre um segundo outro à sua espera, talvez seja uma forma de se por em vantagem. ser onipotente. vai ser difícil depois quando ele não tocar mais, mas eu já terei ido, quem sabe. ao menos terei aprendido a conviver com elefantes anônimos. enquanto ele rapidamente marcará outros compromissos.
talvez fosse melhor atender ao chamado.
estou plena de estradas voltadas e de ventos que me levam para outros lugares. as horas passam.
2 comentários:
Patricia,
Te superaste !!!
Un viaje fantastico a su paisaje mental... nitido... obscuro...
Siga firme en su esfuerzo por sacar a luz... el lindo entorno de tus ojos...
Saludos
Marcelo
Nossa, é muito bom essa prosa,
a descricao da viagem interior,
é genial! Acho que você tem muito talento e MUITA IMGINACAO, adorei
a coisa do elefante e que vem ao final de novo com o elefante anónimo,
exelente imagem.
Deverias comecar de publicar.
Beijo
Astrid
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